A nova Estratégia
Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC), tornada pública a 17 de julho, visa
substituir a atual, de 2017, e vem com um guião – que não existia – das aprendizagens essenciais, com menos
realce para temas, como a sexualidade ou o bem-estar animal, e com ênfase para
a literacia financeira e para o empreendedorismo.
O novo guião
desta Estratégia Nacional, vulgarmente, conhecida como disciplina de Cidadania
e Desenvolvimento (pois os temas são transversais a todo o currículo e só é
disciplina autónoma em alguns níveis de educação e ensino), está em consulta
pública, entre 21 de julho e 1 de agosto, um período demasiado curto. Porém, é
a pressa para entrar no sistema escolar no próximo ano letivo.
A medida surge
em cumprimento de uma promessa eleitoral da nova Aliança Democrática (AD),
resultante de alegados protestos de pais-encarregados de educação, não tendo o
titular da pasta da Educação conseguido indicar um caso. Não obstante, já para
as eleições legislativas de 2024, o então “candidato a primeiro-ministro” (a expressão
não é exata) prometia “desideologizar” a “disciplina” de Cidadania e
Desenvolvimento, respondendo às críticas feitas pelos
setores mais conservadores de que a disciplina estava demasiado focada em temas
que classificam como ideologia de género (mais concretamente, a igualdade de género
e a identidade de género).
Em conferência de imprensa, a 8
de julho, Fernando
Alexandre, ministro da Educação, Ciência e Inovação, com a justificação de “discrepâncias”
na lecionação da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, durante os 20 anos
em que está em vigor (Onde estão os 20 anos? Desde 2011 a 2017, nem vê-la.), anunciou
que, agora, passará a haver um “foco no que são direitos
e deveres de cidadania numa sociedade democrática”, que “orientou
a revisão desta disciplina”.
Por isso,
haverá oito dimensões obrigatórias nesta disciplina, por oposição aos “domínios
obrigatórios e facultativos”, de antes. É caso para questionar se a mudança de designação
de “domínios” para “dimensões” se justifica ou se é relevante,
Os alunos
poderão contar com conteúdos nesta disciplina que passam por “Direitos Humanos”,
“Democracia e Instituições Políticas”, “Desenvolvimento Sustentável”, “Literacia
Financeira e Empreendedorismo”, Saúde, Órgãos de Comunicação, “Risco e
Segurança Rodoviária” e “Pluralismo e Diversidade Cultural”.
Para a concretização
destas oito dimensões, o governante afirma que as escolas poderão contar com a “colaboração
de entidades externas”, que assegurarão a regulação da disciplina.
Com uma alusão a “alarme”,
no passado, dado por “famílias normalizadas”, face a “intervenções dentro da
escola” por entidades que eram convidadas pelos diferentes estabelecimentos de
ensino para ajudar a ensinar estes conteúdos, o ministro da Educação promete,
agora, “acabar com esse alarme”, com o fim da autonomia das escolas nos
conteúdos desta disciplina. Contudo, questionado pelo Diário de Notícias (DN) sobre exemplos concretos deste alarme, preferiu
não os dar, referindo apenas que estiveram na base da revisão da disciplina. E,
com a ideia
de que “é prioritário acabar com este debate em torno da disciplina”, com “este
ruído”, explicou que “os temas da sexualidade são tratados nas disciplinas de
Biologia”, enquanto o domínio da Saúde abordará as “doenças sexualmente
transmissíveis” e os “comportamentos seguros”.
Em relação a
igualdade de género, o ministro garantiu que “não é polémica”. “A polémica surgiu mais nas questões
de identidade de género”, explicou, destacando que o tema “tem de ser tratado
de outra forma”, “pela sua complexidade”, por pessoas especializadas.
Questionado
sobre a intervenção de Rita Matias, deputada do partido Chega, que divulgou,
nas redes sociais, vários nomes de crianças com ascendentes estrangeiros na
educação pré-escolar, Fernando Alexandre lamentou, vincando a “riqueza” da
pluralidade e o “respeito pelo outro”, pela “diferença”. “Querem salientar
um aspeto que achamos positivo, que é a diversidade”, disse o governante sobre
o Chega, apontando, porém, desafios.
Verificando
que “tivemos mais 700 turmas do que tivemos no ano anterior, concluiu que “o
nosso país está a crescer” e sustentou que é necessário integrar todas as
crianças, “sempre de acordo com os valores da nossa Constituição”.
Em relação
aos nomes divulgados, disse apenas, em tom de brincadeira que “alguns deles
eram bonitos”.
Lamento dizer
que o governante cai em vários equívocos. Desde logo, a educação não se dirige a
famílias normalizadas ou não normalizadas, pois, na escola democrática, têm cabimento
as pessoas, independentemente do tipo de família de procedam, do sexo, da orientação
sexual, da nacionalidade, da etnia, da religião, da condição económica ou
social. Depois, não é crível que um
partido, ao publicitar nomes de crianças com ascendentes estanheiros, esteja a
querer salientar a diversidade, a não ser que o ministro fosse ingénuo, o que é
impossível. E dizer que alguns do nomes publicitados eram bonitos é uma afirmação
de mau gosto politica e até uma enormidade desumana, neste contexto.
Também o
titular da pasta da Educação entra em contradição: acusa a autonomia da escola,
em relação à atual ENEC, mas sustenta que a escola pode optar por alguns conteúdos.
Por outro lado, a regulação não cabe a entidades externas, mas ao governo e, no
quadro da sua autonomia e do seu contexto, à escola.
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Na apresentação
do documento, a página Web da Direcção-Geral
da Educação (DGS), releva a adoção da ENEC de uma “abordagem integrada e
articulada”, centrando-se na interdependência entre “Direitos Humanos”,
“Democracia e Instituições Políticas”, “Desenvolvimento Sustentável”, e
“Literacia Financeira e Empreendedorismo”, enquanto dimensões fulcrais para uma
cidadania ativa e participativa num Estado de Direito e em sociedades justas e
sustentáveis. Enfatiza a integração de temáticas prioritárias, como a “Saúde”,
o “Risco e Segurança Rodoviária”, os “Media” e o “Pluralismo e Diversidade
Cultural”, com vista a “uma visão mais abrangente e completa do exercício pleno
de cidadania”.
Quanto às “Aprendizagens Essenciais de Cidadania e
Desenvolvimento”, salienta que, no atinente a “Conhecimentos,
Capacidades, Atitudes e Valores”, bem como às “Ações Estratégicas”, estão
organizadas em oito dimensões de Educação para a Cidadania, que se dividem em
dois grupos. O primeiro, obrigatório em todos os anos de escolaridade do Ensino
Básico e do Ensino Secundário, é constituído pelas dimensões “Direitos
Humanos”, “Democracia e Instituições Políticas”, “Desenvolvimento Sustentável”
e “Literacia Financeira e Empreendedorismo”; o segundo, obrigatório no 1.º Ciclo
do Ensino Básico, no conjunto dos 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico, e no
Ensino Secundário, é composto pelas dimensões “Pluralismo e Diversidade
Cultural”, “Media”, “Saúde”, e “Risco e Segurança Rodoviária”, cabendo à escola
escolher o(s) ano(s) de escolaridade em que cada uma das dimensões vai ser
desenvolvida, em conformidade com a respetiva ENEC.
***
“Enquanto
espaço de desenvolvimento individual e coletivo, a escola assume-se como local
privilegiado para a construção de uma cultura de cidadania ativa, democrática e
responsável, partilhada por todos, promovendo a coesão social”, lê-se no texto
da ENEC.
“A sociedade portuguesa,
no seu contexto nacional, europeu e global, enfrenta inúmeros desafios que
exigem respostas alicerçadas em valores éticos, conhecimento das regras cívicas
e das instituições democráticas, empatia e solidariedade social”, refere o
documento, vincando que a “Educação para a Cidadania
permite aos mais jovens desenvolver capacidades de diálogo, de sentido crítico
e de consciência sobre o seu papel”.
Nos temas
obrigatórios e transversais, a proposta do governo destaca os direitos humanos,
democracia e instituições políticas, desenvolvimento sustentável e literacia
financeira e empreendedorismo. E, num segundo nível de destaque está a saúde, risco e segurança rodoviária,
pluralismo e diversidade cultural e os media.
“Num contexto global em que se assiste a crescentes riscos de fragmentação
social, de desinformação e de polarização, educar para a cidadania corresponde
a investir na coesão social, à volta de valores comuns dos direitos humanos, da
igualdade e não-discriminação, que estão a base do Estado de Direito
democrático português e das sociedades livres”, diz o texto.
Comparando a
nova ENEC e a atual, conclui-se que deixa de existir a atenção
à sexualidade ou à orientação sexual, sendo tratada apenas no contexto de
violações dos direitos humanos.
Apenas no guião de
aprendizagens essenciais para o 3.º Ciclo e no capítulo
dos direitos humanos, os alunos são chamados a “analisar casos históricos e
atuais de violação dos direitos humanos (incluindo, entre
outros, o tráfico de seres humanos, os abusos sexuais, a violência de género,
bem como a violência contra pessoas com orientação sexual e identidade e
expressão de género não normativas)”. E também só entre o 7.º e o 9.º ano, o programa
prevê “debater a (des)igualdade de género em contextos como a educação, o
trabalho e o exercício de cargos políticos”.
No caso dos maus-tratos a
animais, que é destaque no atual programa, a nova ENEC prevê que seja um dos
temas a abordar no capítulo do desenvolvimento sustentável, para os alunos do
2.º Ciclo, levando-os
a “refletir sobre situações em que a ação humana pode comprometer o bem-estar
animal”.
O convívio com
outras culturas mantém-se como um dos pontos relevantes, com a proposta atual incluir o
termo diversidade cultural, em vez da interculturalidade, que consta da atual
ENEC.
O governo defende que os
alunos do 1.º Ciclo sejam ensinados a “manifestar abertura e curiosidade em
conhecer o outro” e a “participar em iniciativas de celebração e valorização da
sua cultura, bem como de outras culturas, no quadro dos valores constitucionais
da sociedade portuguesa”, entre outras matérias.
Aos alunos dos 2.º e 3.º Ciclos
é pedido que valorizem “a diversidade cultural no contexto escolar”, debatam “a
relevância da proteção dos direitos das minorias e das suas culturas”,
reconheçam os “desafios que as pessoas migrantes vivenciam na sociedade de
acolhimento”.
Só no Ensino Secundário
os alunos serão chamados a “refletir, criticamente, sobre consequências
culturais dos atuais processos de globalização (homogeneização versus diferenciação e fragmentação)”, a
“analisar diferentes formas de discriminação, como racismo, xenofobia,
anticiganismo, Islamofobia, antissemitismo, misoginia” e a “debater o papel do
diálogo intercultural e do pluralismo na coesão de sociedades culturalmente
diversas”.
Uma das novidades
é a literacia financeira e o empreendedorismo, com os alunos mais novos a serem
chamados a “compreender a importância da poupança e os seus objetivos” ou a
“diferenciar entre contrair empréstimos (junto de familiares, de amigos ou de
bancos) e conceder empréstimos”. E os alunos mais velhos elaborarão orçamentos
pessoais, familiares e de “um projeto empreendedor, tendo em conta as parcerias
estratégicas e os recursos necessários”, bem como validarão “ideias inovadoras
que possam gerar valor”.
Também o tema dos media tem algum destaque, na proposta do
governo, procurando “incentivar as crianças e os jovens a interpretar a
informação e a utilizar os meios de comunicação social [TIC], nomeadamente, no acesso e na
utilização das tecnologias de informação e comunicação, visando a adoção de
atitudes e comportamentos adequados a uma utilização crítica e segura das
tecnologias digitais, da informação e dos conteúdos gerados por inteligência
artificial [IA]”.
Aos mais velhos serão
pedidas propostas para “transformar e melhorar o ambiente online e o bem-estar na relação com o digital, como forma de
prevenção dos riscos online (dependência, cyberbullying, discurso de ódio,
polarização, trolling, sexting, sextorsão…)”.
***
Na sequência da promessa do primeiro-ministro, em outubro de 2024,
que iria “libertar [a disciplina de Cidadania] das amarras dos projetos
ideológicos”, o Ministério da Educação e da Ciência (MECI) apresentou a nova ENEC
e as aprendizagens essenciais que substituirão os guiões e referenciais em
vigor.
Fernando Alexandre, que tinha assegurado que nenhum dos 17 temas
da ENEC iria cair, falhou, pois lendo as novas orientações e procurando
palavras ou expressões, como “sexualidade” e “saúde sexual e reprodutiva”, não
se encontra nenhuma referência a elas.
Há duas semanas, na conferência de imprensa em que o ministro e o respetivo
secretário de Estado apresentaram as linhas gerais do que se pretende mudar na
ENEC, foi explicado que as questões da sexualidade passariam a estar integradas
no domínio da Saúde. Porém, olhando para o documento em consulta pública, nesta
dimensão, em particular, nada é explicitado, em relação à sexualidade, em
nenhum dos anos de escolaridade, nem sequer no que diz respeito a doenças
sexualmente transmissíveis ou à contraceção. Para o 2.º e 3.º Ciclos do Ensino
Básico, define-se apenas como aprendizagem essencial saber “respeitar questões
relacionadas com a intimidade e a privacidade de cada pessoa”.
Nesta
área, definia-se como um dos objetivos ajudar os alunos a “compreender, respeitar e aceitar
a diversidade na sexualidade e na orientação sexual”,
ensinando que “a identidade de género é a experiência interna e individual de
género profundamente sentida por cada pessoa que pode, ou não, corresponder às
expectativas sociais” e que os jovens não devem ser limitados na forma como se
expressam a este nível.
Os
conteúdos relacionados com a sexualidade, em particular, com a orientação
sexual e com a identidade de género, geraram contestação junto da direita
conservadora, a ponto de levar um pai a querer retirar os filhos da disciplina, num
caso que foi presente a tribunal.
O
partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP),
que se coligou com o Partido Social Democrata (PSD), chegou a defender que a
disciplina fosse de frequência facultativa,
cabendo aos pais a decisão de matricular ou não os filhos. E o Chega apresentou na uma proposta
nesse sentido. O governo, porém, decidiu
manter a “disciplina” obrigatória, mas reviu o programa e estabeleceu novas
orientações para o que deve ser ensinado.
De acordo com as linhas orientadoras, as únicas referências a
“identidade de género” e a “orientação sexual” surgem no âmbito do tema
“Direitos Humanos”, estabelecendo-se que os professores devem abordar com os
alunos, no 3.º Ciclo, “casos históricos e atuais de violação dos direitos
humanos, incluindo, entre outros, tráfico de seres humanos, abusos sexuais,
violência de género, bem como violência contra pessoas com orientação sexual e
identidade e expressão de género não normativas”. Fora isso, não há qualquer
indicação sobre o tema.
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Enfim,
substituiu-se uma ideologia por outra. E temas relevantes passaram a ser abordados
em contexto técnico-científico ou em situações-limite. Perde-se a atitude
cidadã. Esperemos que o Conselho da Europa faça a sua crítica.
2025.07.21 – Louro de carvalho
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