quarta-feira, 25 de junho de 2025

Por uma economia global sustentável e centrada nas pessoas

 
Foi apresentado, na Pontifícia Academia de Ciências Sociais, a 20 de junho, dia de discussão sobre como as reformas nos sistemas financeiros internacionais poderiam avançar em direção a um sistema centrado nas pessoas, o “Relatório Jubilar: Um Plano para Enfrentar as Crises da Dívida e do Desenvolvimento e Criar as Bases Financeiras para uma Economia Global Sustentável e Centrada nas Pessoas”, que a Santa Sé apoia, visto que pede reformas para aliviar a dívida que afeta milhares de milhões de pessoas de países em desenvolvimento.
É uma das principais iniciativas do Ano Jubilar da Esperança 2025 e um projeto da Comissão Jubileu, criada pelo Papa Francisco, em junho de 2024, visando encontrar uma forma de implementar a reestruturação da dívida soberana, com base em princípios éticos. A comissão teve a participação de 30 especialistas económicos internacionais, como Joseph Stiglitz, que ganhou o Prémio Nobel de Economia, em 2001, e Martín Guzmán, ministro da Economia da Argentina, de 2019 a 2022, no governo do presidente Alberto Fernández, do Partido Justicialista.
O documento refere que cerca de 50 países em desenvolvimento já destinam cerca de 10% das suas receitas fiscais ao pagamento de juros, dinâmica que desvia recursos financeiros de setores vitais, como saúde, educação e resiliência climática, ou seja, a crise da dívida que sufoca o sistema financeiro global está a alimentar “uma crise de desenvolvimento”. Por isso, o relatório propõe medidas e recomendações para transformar o sistema financeiro internacional num instrumento de justiça e de sustentabilidade. Entre elas, sobressai a criação de um mecanismo internacional de falência para países soberanos, análogo ao das empresas privadas; o fim dos resgates governamentais de investidores privados; e a concessão de empréstimos-ponte e de apoio financeiro, de curto prazo, para países em crise.
A iniciativa segue espírito do ano jubilar, associado à misericórdia e ao perdão de dívidas. Na bula papal Spes non confundit, Francisco pediu aos governos que demonstrem clemência, por meio de medidas extraordinárias, como o perdão da dívida externa dos países pobres. E o relatório reassume o espírito do Jubileu do Ano 2000, quando, em 1997, São João Paulo II iniciou um movimento global, baseado na doutrina social da Igreja (DSI), que pedia o perdão da dívida dos países mais pobres e que deu origem à campanha “Jubileu 2000”, que mobilizou milhões de assinaturas, em todo o Mundo, e comunidades religiosas de todas as tradições. Graças a esse movimento, foram perdoados cerca de 100 mil milhões de dólares em dívidas.
“As finanças globais devem servir às pessoas e ao planeta – não punir os mais pobres para proteger os lucros”, conclui o relatório. E Joseph Stiglitz, professor da Universidade Columbia e membro honorário da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, apelo forte para “coibir os abusos de grandes credores privados”, pois, a par da responsabilidade compartilhada entre credores e devedores, na sua ótica, “há uma responsabilidade maior, por parte dos credores”, porque não os obrigou a emprestar dinheiro, e “eles deveriam ser os especialistas em análise de risco”.
O economista criticou, particularmente, o BlackRock e outros grandes fundos, que incentivam um tipo de empréstimo de alto risco que termina em crises; e defendeu o fortalecimento do papel dos bancos multilaterais de desenvolvimento, que podem dar empréstimos a taxas mais baixas, o que “ajudaria a reduzir as taxas de juros e tornar a dívida sustentável”.
Alfonso Apicella, representante da Cáritas Internacional, pediu que o debate técnico sobre a dívida nunca perca de vista as pessoas mais afetadas.
E Stiglitz atirou: “Estamos aqui para falar sobre crescimento sustentável, mas a verdadeira questão é: Crescimento sustentável para quem? Essa é a pergunta que as comunidades nos fazem, repetidamente, quando lançamos campanhas como a Transforme Dívida em Esperança.”
Falando em nome da rede global de 162 organizações que compõem a Cáritas, Apicella enfatizou que o discurso sobre “sustentabilidade” corre o risco de se tornar um slogan vazio, se não for explicitado o seu foco inclusivo. “Temos de falar sobre crescimento sustentável para todos, não só para alguns. E devemos sempre lembrar-nos disso, especialmente, quando falamos de uma perspetiva técnica”, disse o especialista, vincando que, “por trás de cada número, há pessoas que vivenciam essas realidades em primeira mão”.
Apicella também enfatizou a necessidade de mudar a narrativa da dívida. “Devemos enquadrar essa luta pela justiça da dívida como uma situação vantajosa para todos. […] Se trabalharmos pelos pobres, os formuladores de políticas devem entender que eles também serão beneficiados”, explicitou.
O professor Kevin Gallagher, diretor do Centro de Política de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston, destacou organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) que forçaram os países pobres a “abrir prematuramente suas contas de capital”. No entanto, também falou sobre a responsabilidade interna de muitos países em desenvolvimento que, segundo o relatório, “tomaram empréstimos em excesso e investiram muito pouco”. E sustentou que, embora “o alívio da dívida seja essencial”, é necessário propor medidas de implementação viáveis ​​dentro do atual ambiente internacional que transformem o sistema financeiro. “Já aprendemos com o último perdão de dívidas do jubileu, em 2009, que o alívio da dívida, sem reformas na arquitetura financeira internacional, só nos levará a repetir todo esse processo”, disse o professor, frisando que “é uma pena que estejamos nessa situação, novamente”, e apelando a que “não repitamos os mesmos erros”.
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Após este conspecto geral, parece-me razoável deixar algumas notas sobre o teor do documento.
* Há falhas sistémicas na arquitetura financeira global que comprometem o desenvolvimento. Por exemplo, o sistema financeiro internacional não é projetado para atender às necessidades dos países em desenvolvimento, antes reflete e reforça profundas assimetrias estruturais (económicas e sociais) entre as economias em desenvolvimento e as economias avançadas, as quais, por sua vez, moldam as condições sob as quais os países tomam empréstimos, os custos que enfrentam, ao fazê-lo, e as consequências desse endividamento. A era colonial deixou para trás estruturas económicas voltadas à extração e exportação de matérias-primas, com baixos níveis de diversificação produtiva e forte dependência de bens de consumo importados. Essa dependência tem-se mostrado difícil de superar para muitas sociedades. Em muitos casos, a arquitetura do comércio global tem sido um obstáculo. E os mercados financeiros globais penalizam essas fraquezas herdadas, transferindo os riscos para os países mais pobres.
* O atual quadro de governança global é inadequado para resolver o superendividamento. Quando as Instituições de Bretton Woods foram criadas após a II Guerra Mundial, a comunidade global aspirava construir um sistema que promovesse paz, estabilidade e prosperidade compartilhada. Porém, o sistema continua inadequado e incompleto. No âmago do problema está uma lacuna na arquitetura económica internacional, isto é, a ausência de um mecanismo de resolução de crises de dívida soberana.  
* E, neste âmbito surgem novas preocupações: o surgimento de novos credores importantes tornou mais complexas as reestruturações; a adoção de financiamento misto e de parcerias público-privadas (PPP) (às vezes, tidas como substitutos para a assistência oficial ao desenvolvimento) criou nova onda de passivos contingentes – em geral, opacos, pró-cíclicos e difíceis de reestruturar; os problemas discutidos são amplificados pela proliferação de tratados de investimento bilaterais que submeteram os países em desenvolvimento à crescente onda de custosas reivindicações legais, tornando-se outra fonte de passivos contingentes opacos; as agências de classificação de crédito (CRA) exercem influência desproporcionada na dinâmica da dívida soberana; os países em desenvolvimento enfrentam novos e grandes riscos, desde as mudanças climáticas até a desintegração da arquitetura económica internacional do pós-guerra; e os países ricos falharam em cumprir as promessas de assistência aos países em desenvolvimento, assim como os anos recentes mostraram acentuada queda nos fluxos, em especial, nos direcionados, principalmente, ao aumento do crescimento e à redução da pobreza.
* As abordagens para resolver crises de dívida devem refletir os seguintes princípios:
. Fazer abordagens específicas para cada país, mas sob princípios comuns;
. Promover a responsabilidade compartilhada entre credores e devedores (aprimorar a governança nas instituições);
. Sem mais transferências líquidas para fora dos países com crise de dívida;
. As reestruturações, muitas vezes, devem incluir reduções do principal;
. Às vezes, reduções nas taxas de juros e extensões de maturidade são suficientes; mas as extensões de maturidade devem ser longas e as reduções de juros devem ser significativas;
. Promover o crescimento, em vez de austeridade;
. Atrasar a reestruturação ao tomar empréstimos a juros exorbitantes apenas agrava a situação.
* À luz destes princípios, há uma série de ações que precisam ser tomadas, para ajudar a resolver a atual crise da dívida.
1. Estender e ampliar as iniciativas de suspensão da dívida (onde a dívida é claramente insustentável, o tratamento deve ir além da suspensão para a redução);
2. Determinar ação política rápida para mudar incentivos (isto inclui o não resgate e as saudáveis reformas legislativas);
3. Usar swaps de dívida, de forma cautelosa, transparente e equitativa (por exemplo, permitindo que os países redirecionem parte dos pagamentos da dívida para projetos de conservação, como proteção da biodiversidade ou adaptação e mitigação das mudanças climáticas);
4. Incentivar a cooperação do setor privado pelo FMI/BMD (Fundo Monetário Internacional / Banco Mundial de Desenvolvimento): em direção a um HIPC II (nova iniciativa para o alívio da dívida dos países severamente endividados), oferecendo empréstimos de ponte e outros financiamentos para contribuir com programas económicos, para recuperação de curto prazo, e de desenvolvimento, de longo prazo, desde que o setor privado colabore totalmente.
* Para evitar e resolver crises de dívida, no futuro, será necessário:
1. Melhorar a “qualidade” do empréstimo;
2. Abordar as disfunções fundamentais nos mercados financeiros globais;
3. Promover a adoção de regulações da conta de capitais, para prevenir movimentos de fluxo de capital desestabilizadores e para reduzir a pro-ciclicalidade dos fluxos financeiros globais em economias em desenvolvimento;
4. Elaboração de contratos melhores;
5. Criar um marco para a resolução das dívidas soberanas.
* Também é preciso reformar as estruturas de sustentabilidade da dívida: melhorando o reconhecimento da endogeneidade e da vulnerabilidade climática nas ASD (análises de sustentabilidade da dívida); mudando a estrutura das ASD de estabilização da dívida para crescimento e desenvolvimento sustentável e usando-as como uma ferramenta para calcular a capacidade de pagamento da dívida que seja compatível com o desenvolvimento sustentável (em vez de referenciar as ASD ao desígnio financeiro); e reformando o papel das agências de classificação de risco (ACR) privadas.
* Devem mudar as políticas do FMI e de outras instituições multilaterais: encerrando a abordagem de promover a austeridade, para maximizar o pagamento da dívida externa; reformando, ainda mais, as políticas de taxas de juros e sobretaxas do FMI; reabastecendo e reformando o Fundo de Contenção e Alívio de Catástrofes (CCRT) do FMI; fazendo uso mais extenso dos direitos especiais de saque (DES), para promover o desenvolvimento global, incluindo a sustentabilidade da dívida – e, se necessário, criar um novo sistema de DES; e criando um fundo para a recompra de dívidas em dificuldades para reduzir níveis de dívida insustentáveis.
* Requer-se mais e melhor financiamento e compartilhamento de risco da comunidade internacional, criando um fundo global para o clima e criando outro para estabilizar os preços das commodities (produtos básicos, geralmente matérias-primas, produzidos em larga escala).
* São necessárias reformas mais amplas no sistema multilateral de financiamento para desenvolvimento: expandindo o capital, mas repensando o modelo; mudando de empréstimos baseados em projetos para investimentos orientados por missão; fortalecendo a rede de segurança financeira global e aumentando a voz e o voto dos países em desenvolvimento; e aproveitando o papel dos BDM (bancos de desenvolvimento multilaterais), para expandir o empréstimo em moedas locais.
* É preciso reformar a legislação de jurisdição dos credores, para apoiar reestruturações justas da dívida soberana: limitando a litígios predatórios por fundos abutres; reduzindo a desatualizada e punitiva taxa de juros de pré-julgamento; e introduzindo tetos de recuperação para garantir a comparabilidade de tratamento nas reestruturações de dívida.
* Por fim, é preciso melhorar as condições de financiamento local e regional em países e em regiões em desenvolvimento: promovendo o financiamento em moeda local, aprofundando os mercados de capitais domésticos e aumentando a supervisão regulatória; fomentando a coordenação e a cooperação entre devedores; e fortalecendo a integração financeira Sul-Sul (assim, os países num continente ou numa região trabalham juntos para se moldar um futuro baseado na dignidade e na justiça).
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Resolver uma crise de dívida soberana é empreitada profundamente política e moral. É uma questão de como as perdas são distribuídas entre sociedades, gerações e atores internacionais. Não é suficiente abordar as crises do momento. Se não reformarmos o sistema em si, continuaremos a reproduzir as dinâmicas que nos levaram aqui. A arquitetura financeira internacional deve ser reformulada para criar acesso sustentado ao financiamento necessário para o crescimento inclusivo, transformações climáticas e estruturais, além de permitir resoluções de dívida justas e eficientes.
No entanto, mesmo isso não será suficiente, pois a dívida é apenas um pilar de uma ordem económica global que não é propícia à paz duradoura, ao desenvolvimento sustentável e à prosperidade compartilhada para a comunidade global. Se quisermos alcançar esses objetivos, devemos ir além. Devemos reformar toda a arquitetura da economia global e os sistemas que moldam as oportunidades e distribuem riscos pelo Mundo: as regras para tributação, para comércio e para a criação e difusão do conhecimento.
Ver mais em: https://ipdcolumbia.org/wp-content/uploads/2025/06/Jubilee-report-Portuguse.pdf

2025.06.24 – Louro de Carvalho


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