Foi apresentado, na Pontifícia Academia de Ciências Sociais, a 20 de junho, dia de discussão sobre como as reformas nos sistemas financeiros internacionais poderiam avançar em direção a um sistema centrado nas pessoas, o “Relatório Jubilar: Um Plano para Enfrentar as Crises da Dívida e do Desenvolvimento e Criar as Bases Financeiras para uma Economia Global Sustentável e Centrada nas Pessoas”, que a Santa Sé apoia, visto que pede reformas para aliviar a dívida que afeta milhares de milhões de pessoas de países em desenvolvimento.
É uma das principais iniciativas do Ano Jubilar da Esperança 2025 e um projeto da Comissão Jubileu, criada pelo Papa Francisco, em junho de 2024, visando encontrar uma forma de implementar a reestruturação da dívida soberana, com base em princípios éticos. A comissão teve a participação de 30 especialistas económicos internacionais, como Joseph Stiglitz, que ganhou o Prémio Nobel de Economia, em 2001, e Martín Guzmán, ministro da Economia da Argentina, de 2019 a 2022, no governo do presidente Alberto Fernández, do Partido Justicialista.
O documento refere que cerca de 50 países em desenvolvimento já destinam cerca de 10% das suas receitas fiscais ao pagamento de juros, dinâmica que desvia recursos financeiros de setores vitais, como saúde, educação e resiliência climática, ou seja, a crise da dívida que sufoca o sistema financeiro global está a alimentar “uma crise de desenvolvimento”. Por isso, o relatório propõe medidas e recomendações para transformar o sistema financeiro internacional num instrumento de justiça e de sustentabilidade. Entre elas, sobressai a criação de um mecanismo internacional de falência para países soberanos, análogo ao das empresas privadas; o fim dos resgates governamentais de investidores privados; e a concessão de empréstimos-ponte e de apoio financeiro, de curto prazo, para países em crise.
A iniciativa segue espírito do ano jubilar, associado à misericórdia e ao perdão de dívidas. Na bula papal Spes non confundit, Francisco pediu aos governos que demonstrem clemência, por meio de medidas extraordinárias, como o perdão da dívida externa dos países pobres. E o relatório reassume o espírito do Jubileu do Ano 2000, quando, em 1997, São João Paulo II iniciou um movimento global, baseado na doutrina social da Igreja (DSI), que pedia o perdão da dívida dos países mais pobres e que deu origem à campanha “Jubileu 2000”, que mobilizou milhões de assinaturas, em todo o Mundo, e comunidades religiosas de todas as tradições. Graças a esse movimento, foram perdoados cerca de 100 mil milhões de dólares em dívidas.
“As finanças globais devem servir às pessoas e ao planeta – não punir os mais pobres para proteger os lucros”, conclui o relatório. E Joseph Stiglitz, professor da Universidade Columbia e membro honorário da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, apelo forte para “coibir os abusos de grandes credores privados”, pois, a par da responsabilidade compartilhada entre credores e devedores, na sua ótica, “há uma responsabilidade maior, por parte dos credores”, porque não os obrigou a emprestar dinheiro, e “eles deveriam ser os especialistas em análise de risco”.
O economista criticou, particularmente, o BlackRock e outros grandes fundos, que incentivam um tipo de empréstimo de alto risco que termina em crises; e defendeu o fortalecimento do papel dos bancos multilaterais de desenvolvimento, que podem dar empréstimos a taxas mais baixas, o que “ajudaria a reduzir as taxas de juros e tornar a dívida sustentável”.
Alfonso Apicella, representante da Cáritas Internacional, pediu que o debate técnico sobre a dívida nunca perca de vista as pessoas mais afetadas.
E Stiglitz atirou: “Estamos aqui para falar sobre crescimento sustentável, mas a verdadeira questão é: Crescimento sustentável para quem? Essa é a pergunta que as comunidades nos fazem, repetidamente, quando lançamos campanhas como a Transforme Dívida em Esperança.”
Falando em nome da rede global de 162 organizações que compõem a Cáritas, Apicella enfatizou que o discurso sobre “sustentabilidade” corre o risco de se tornar um slogan vazio, se não for explicitado o seu foco inclusivo. “Temos de falar sobre crescimento sustentável para todos, não só para alguns. E devemos sempre lembrar-nos disso, especialmente, quando falamos de uma perspetiva técnica”, disse o especialista, vincando que, “por trás de cada número, há pessoas que vivenciam essas realidades em primeira mão”.
Apicella também enfatizou a necessidade de mudar a narrativa da dívida. “Devemos enquadrar essa luta pela justiça da dívida como uma situação vantajosa para todos. […] Se trabalharmos pelos pobres, os formuladores de políticas devem entender que eles também serão beneficiados”, explicitou.
O professor Kevin Gallagher, diretor do Centro de Política de Desenvolvimento Global da Universidade de Boston, destacou organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) que forçaram os países pobres a “abrir prematuramente suas contas de capital”. No entanto, também falou sobre a responsabilidade interna de muitos países em desenvolvimento que, segundo o relatório, “tomaram empréstimos em excesso e investiram muito pouco”. E sustentou que, embora “o alívio da dívida seja essencial”, é necessário propor medidas de implementação viáveis dentro do atual ambiente internacional que transformem o sistema financeiro. “Já aprendemos com o último perdão de dívidas do jubileu, em 2009, que o alívio da dívida, sem reformas na arquitetura financeira internacional, só nos levará a repetir todo esse processo”, disse o professor, frisando que “é uma pena que estejamos nessa situação, novamente”, e apelando a que “não repitamos os mesmos erros”.
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Após este conspecto
geral, parece-me razoável deixar algumas notas sobre o teor do documento.* Há falhas sistémicas na arquitetura financeira global que comprometem o desenvolvimento. Por exemplo, o sistema financeiro internacional não é projetado para atender às necessidades dos países em desenvolvimento, antes reflete e reforça profundas assimetrias estruturais (económicas e sociais) entre as economias em desenvolvimento e as economias avançadas, as quais, por sua vez, moldam as condições sob as quais os países tomam empréstimos, os custos que enfrentam, ao fazê-lo, e as consequências desse endividamento. A era colonial deixou para trás estruturas económicas voltadas à extração e exportação de matérias-primas, com baixos níveis de diversificação produtiva e forte dependência de bens de consumo importados. Essa dependência tem-se mostrado difícil de superar para muitas sociedades. Em muitos casos, a arquitetura do comércio global tem sido um obstáculo. E os mercados financeiros globais penalizam essas fraquezas herdadas, transferindo os riscos para os países mais pobres.
* O atual quadro de governança global é inadequado para resolver o superendividamento. Quando as Instituições de Bretton Woods foram criadas após a II Guerra Mundial, a comunidade global aspirava construir um sistema que promovesse paz, estabilidade e prosperidade compartilhada. Porém, o sistema continua inadequado e incompleto. No âmago do problema está uma lacuna na arquitetura económica internacional, isto é, a ausência de um mecanismo de resolução de crises de dívida soberana.
* As abordagens para resolver crises de dívida devem refletir os seguintes princípios:
. Fazer abordagens específicas para cada país, mas sob princípios comuns;
. Promover a responsabilidade compartilhada entre credores e devedores (aprimorar a governança nas instituições);
. Sem mais transferências líquidas para fora dos países com crise de dívida;
. As reestruturações, muitas vezes, devem incluir reduções do principal;
. Às vezes, reduções nas taxas de juros e extensões de maturidade são suficientes; mas as extensões de maturidade devem ser longas e as reduções de juros devem ser significativas;
. Promover o crescimento, em vez de austeridade;
. Atrasar a reestruturação ao tomar empréstimos a juros exorbitantes apenas agrava a situação.
* À luz destes princípios, há uma série de ações que precisam ser tomadas, para ajudar a resolver a atual crise da dívida.
1. Estender e ampliar as iniciativas de suspensão da dívida (onde a dívida é claramente insustentável, o tratamento deve ir além da suspensão para a redução);
2. Determinar ação política rápida para mudar incentivos (isto inclui o não resgate e as saudáveis reformas legislativas);
3. Usar swaps de dívida, de forma cautelosa, transparente e equitativa (por exemplo, permitindo que os países redirecionem parte dos pagamentos da dívida para projetos de conservação, como proteção da biodiversidade ou adaptação e mitigação das mudanças climáticas);
4. Incentivar a cooperação do setor privado pelo FMI/BMD (Fundo Monetário Internacional / Banco Mundial de Desenvolvimento): em direção a um HIPC II (nova iniciativa para o alívio da dívida dos países severamente endividados), oferecendo empréstimos de ponte e outros financiamentos para contribuir com programas económicos, para recuperação de curto prazo, e de desenvolvimento, de longo prazo, desde que o setor privado colabore totalmente.
* Para evitar e resolver crises de dívida, no futuro, será necessário:
1. Melhorar a “qualidade” do empréstimo;
2. Abordar as disfunções fundamentais nos mercados financeiros globais;
3. Promover a adoção de regulações da conta de capitais, para prevenir movimentos de fluxo de capital desestabilizadores e para reduzir a pro-ciclicalidade dos fluxos financeiros globais em economias em desenvolvimento;
4. Elaboração de contratos melhores;
5. Criar um marco para a resolução das dívidas soberanas.
* Também é preciso reformar as estruturas de sustentabilidade da dívida: melhorando o reconhecimento da endogeneidade e da vulnerabilidade climática nas ASD (análises de sustentabilidade da dívida); mudando a estrutura das ASD de estabilização da dívida para crescimento e desenvolvimento sustentável e usando-as como uma ferramenta para calcular a capacidade de pagamento da dívida que seja compatível com o desenvolvimento sustentável (em vez de referenciar as ASD ao desígnio financeiro); e reformando o papel das agências de classificação de risco (ACR) privadas.
* Devem mudar as políticas do FMI e de outras instituições multilaterais: encerrando a abordagem de promover a austeridade, para maximizar o pagamento da dívida externa; reformando, ainda mais, as políticas de taxas de juros e sobretaxas do FMI; reabastecendo e reformando o Fundo de Contenção e Alívio de Catástrofes (CCRT) do FMI; fazendo uso mais extenso dos direitos especiais de saque (DES), para promover o desenvolvimento global, incluindo a sustentabilidade da dívida – e, se necessário, criar um novo sistema de DES; e criando um fundo para a recompra de dívidas em dificuldades para reduzir níveis de dívida insustentáveis.
* Requer-se mais e melhor financiamento e compartilhamento de risco da comunidade internacional, criando um fundo global para o clima e criando outro para estabilizar os preços das commodities (produtos básicos, geralmente matérias-primas, produzidos em larga escala).
* São necessárias reformas mais amplas no sistema multilateral de financiamento para desenvolvimento: expandindo o capital, mas repensando o modelo; mudando de empréstimos baseados em projetos para investimentos orientados por missão; fortalecendo a rede de segurança financeira global e aumentando a voz e o voto dos países em desenvolvimento; e aproveitando o papel dos BDM (bancos de desenvolvimento multilaterais), para expandir o empréstimo em moedas locais.
* É preciso reformar a legislação de jurisdição dos credores, para apoiar reestruturações justas da dívida soberana: limitando a litígios predatórios por fundos abutres; reduzindo a desatualizada e punitiva taxa de juros de pré-julgamento; e introduzindo tetos de recuperação para garantir a comparabilidade de tratamento nas reestruturações de dívida.
* Por fim, é preciso melhorar as condições de financiamento local e regional em países e em regiões em desenvolvimento: promovendo o financiamento em moeda local, aprofundando os mercados de capitais domésticos e aumentando a supervisão regulatória; fomentando a coordenação e a cooperação entre devedores; e fortalecendo a integração financeira Sul-Sul (assim, os países num continente ou numa região trabalham juntos para se moldar um futuro baseado na dignidade e na justiça).
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Resolver uma crise de dívida
soberana é empreitada profundamente política e moral. É uma questão de como as
perdas são distribuídas entre sociedades, gerações e atores internacionais. Não
é suficiente abordar as crises do momento. Se não reformarmos o sistema em si,
continuaremos a reproduzir as dinâmicas que nos levaram aqui. A arquitetura
financeira internacional deve ser reformulada para criar acesso sustentado ao financiamento
necessário para o crescimento inclusivo, transformações climáticas e
estruturais, além de permitir resoluções de dívida justas e eficientes.No entanto, mesmo isso não será suficiente, pois a dívida é apenas um pilar de uma ordem económica global que não é propícia à paz duradoura, ao desenvolvimento sustentável e à prosperidade compartilhada para a comunidade global. Se quisermos alcançar esses objetivos, devemos ir além. Devemos reformar toda a arquitetura da economia global e os sistemas que moldam as oportunidades e distribuem riscos pelo Mundo: as regras para tributação, para comércio e para a criação e difusão do conhecimento.
Ver mais em: https://ipdcolumbia.org/wp-content/uploads/2025/06/Jubilee-report-Portuguse.pdf
2025.06.24
– Louro de Carvalho
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